Há mais de 70 anos, minha família abastece a casa na roça na mesma venda que virou armazém que depois virou loja em outro vilarejo. Sendo um local muito remoto, com acesso por estrada de terra, sempre foi necessário trabalhar com recados, entregas e pagamento fiado – no final do mês, no final do semestre, ou nas épocas em que não conseguíamos chegar lá, valia até pagar no final do ano. Antigamente, as entregas ocorriam no lombo do burro; atualmente, vêm de caminhão. Já são três gerações de relacionamento, indo para a quarta!
A modernidade foi chegando. Primeiro, a eletricidade; depois, a internet de rádio (hoje podemos escolher entre rádio, fibra ou satélite!). Telefone mesmo, nunca chegou.. A estrada continua de terra; o sistema bancário foi melhorando, passou-se a poder fazer depósitos e, mais recentemente, PIX! E, nem assim, deixamos de comprar fiado, pois é muito mais fácil fechar a conta no final do mês. Com o WhatsApp, parecia que não precisávamos de mais nada para manter nossa relação comercial viva: ao final de cada mês, bastava perguntar quanto estava devendo, recebia a foto das notinhas, a foto da conta do total escrita a mão, pagava o PIX, e continuava pedindo mercadorias e entregas no próximo mês. De qualquer lugar do Brasil e do mundo!
Aí chegou a Inteligência Artificial! Perguntei ao meu amigo da loja: “Bom dia! Tudo bem por aí? Vamos fazer nosso acerto?” Nos bons tempos da inteligência natural, bastava isso, que eu receberia o seguinte áudio: “Bom dia, dona Betina, tudo bem sim. Vou separar aqui e já vou encaminhar as notinhas para a senhora, tá bom?”, naquele delicioso sotaque local.
Pois é. Desta vez, a resposta para meu bom dia foi: “Como posso te ajudar hoje?”. Aí eu fiquei confusa: onde estava meu amigo? Onde estava o sotaque? Chequei se estava na loja certa. Afinal, eu podia estar no Magazine Luiza ou nas Casas Bahia ou até na Shein! Não. Era só meu amigo que parecia que não estava mais falando direito. Ainda recebi outra resposta eficiente: “Para realizar o pagamento via transferência bancária, você pode acessar o link para pagamento: (...) e seguir as instruções para concluir a transação. Caso tenha alguma dúvida ou precise de mais informações, estou à disposição para ajudar!”
Era isso mesmo: meu amigo tinha sumido. Não fazia mais diferença comprar lá ou no varejão. Comecei a temer pelo fim da variante linguística – e pelo fim dos tempos! Perguntei se o número da conta mudou.
Ufa! Ele percebeu que tinha algo estranho, e me mandou um áudio com o seu velho e bom sotaque, que me dava a certeza de que estava falando com alguém que conhecia bem: “Não, dona Betina, não mudou, não. A transferência bancária continua a mesma, tá bom? Ééé, porque a gente implantou a inteligência artificial aqui na loja, aí ela fica mandando essas mensagens no WhatsApp, tá bom? Mas qualquer dúvida, é só a senhora me mandar uma mensagem no particular ou ligar para mim”. Ainda bem que existe “o particular” para manter as relações humanas vivas. Aí, veio, por escrito “Tenha um ótimo dia!” Foi meu amigo ou a máquina que disse isso? Nunca vou saber!!!
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